“Quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus”
O tema e o lema para o Mês da Bíblia de 2019 fundamentam-se na Primeira carta de João e foram indicados pela Comissão Bíblico-catequética da CNBB em conjunto com outras instituições bíblicas: Tema: “Para que n’Ele nossos povos tenham vida - Primeira Carta de João”- Lema: “Nós amamos porque Deus primeiro nos amou” (cf.1Jo 4,19). A Primeira Carta de João (1Jo) faz parte das Cartas do Novo Testamento conhecidas como “Cartas Católicas”: (1ª e 2ª de Pedro; 1ª, 2ª e 3ª de João, de Tiago e de Judas). A palavra “católica” é de origem grega e significa “universal” isto é, “para todos”, dirigidas a todos os cristãos e a todas as comunidades cristãs. As três cartas atribuídas a João, pertencem “a tradição joanina”, por apresentarem conteúdos teológicos semelhantes ao “Evangelho segundo João”.
A carta, provavelmente foi dirigida a uma Comunidade Cristã da cidade de Éfeso, que atualmente se chama Selçuk, na Ásia Menor, hoje Turquia. Éfeso, no tempo do NT com 250 mil habitantes, uma das 5 principais cidades do “Mundo Greco-Romano”, interligava Grécia e Roma por mar e por vias terrestres e com uma população mista: egípcios, gregos, ítalos, sírios, judeus; com uma “típica sociedade escravagista”, dividida em senhores e súditos. Éfeso, como outras cidades greco-romanas, também, sediava santuários e templos com grande variedade de cultos aos deuses, escolas filosóficas e movimentos que primavam pelo espiritual e “mente iluminada”, o “conhecimento”, como o “gnosticismo”.
Nestas cidades, também, se encontrava “os males da ganância, exploração, corrupção, violência, imoralidades, desigualdade, miséria e fome” (cf. 1Jo 2,16); os que viviam na busca desenfreada de “poder, prazer e honra”; os que sustentavam “o espírito do mundo greco-romano dos que tinham poder e riqueza” e sobretudo, os que buscavam o “conhecimento”, propondo-se como “iluminados” que a carta os chama de “maligno” (cf 1Jo 2,13). E nelas, também, abrigava-se grande população de imigrantes pobres e escravos, que provinham do Oriente Médio em busca de sobrevivência, considerados “mercadoria e propriedade”, pela sociedade escravagista; vistos como “acéfalos”, sem capacidade de evoluir na mente ou alcançar a “iluminação da mente”, eram subjugados por um “sistema patronal”, isto é, um “Patrono”, favorecia o pobre, oferecendo trabalho, mas, que se tornava “dependente e submisso”, que devia sentir-se grato e devedor de favores dos que tinham poder.
As Comunidades Cristãs de Éfeso e todas as comunidades da Ásia Menor, conviviam com essa realidade. Com elas a Boa Nova de Jesus, o Messias Encarnado, foi espalhada, no seguimento do Evangelho com ênfase no “amor ao próximo” (cf.1Jo 2,3-11). Ao contrário da “Rede Clientelista” de troca de favores, do mundo greco-romano, a Comunidade Cristã criou a “Rede de solidariedade”: criando espaços de liberdade e dignidade sem dependências e sem distinção de pessoas; com partilha de alimentos entre os pobres; no acolhimento de forasteiros, estrangeiros e perseguidos; atendendo as necessidades de viúvas e órfãos e sepultura digna aos pobres e escravos. O princípio que os orientava era “o amor ao próximo, manifestado na vida concreta de Jesus, o Messias encarnado” (cf 1Jo 3,11-14).
No entanto, as Comunidades Cristãs da Ásia Menor, sofriam divisões internas, conflitos, contradições e extravagâncias, por parte de pessoas que faziam parte da comunidade e se auto proclamavam “profeta e mestre” (cf. Jd 8-19; 2Pd 2,1-3), que eram membros das comunidades cristãs, mas, davam mais atenção ao “Movimento Gnóstico”, que sustentava, que a salvação estava ligada ao “conhecimento”, ao “desenvolvimento da mente”; ensinava que era suficiente a “iluminação da mente” e viver “espiritualmente” para entrar em comunhão com Deus e ganhar a salvação; levava a crer que a “vida moral e a ética” não tinha nada a ver com a vida cotidiana, nem com a realidade presente, nem com as pessoas e nem mesmo com o que era comum a todos e que bastava estar em “comunhão com Deus Verdadeiro” e estava garantida a salvação.Tais mestres e profetas, para afirmar sua posição, renegavam o Jesus Histórico, “aquele que passou entre nós fazendo o bem” (At 2,22-24); renegavam Jesus como “Messias Encarnado”, sua vida terrena, morte e ressurreição, como também, sua “vinda gloriosa” para o julgamento dos que praticam o mal (cf. Jd 16; 2Pd 2,13-14). A estes cristãos, que ensinavam que a salvação provinha do conhecimento, que negavam a “encarnação de Jesus”, o autor os chama de “anticristos” (1Jo 2,18; 4,2-3; 2Jo 7); de “falsos profetas” (1Jo 4,1), enganosos (cf 1Jo 2,26;3,7) e “mentirosos” (1Jo 2,4. 22).
Estes “anticristos” sustentavam um ensinamento e uma prática que se assemelhava ao do “movimento gnóstico”: “a salvação estava no conhecimento”, somente pela “iluminação mental e espiritual a pessoa entrava em comunhão com Deus verdadeiro”. Assim, a prática da fé cristã, era substituída pelas “buscas espirituais” sem o “seguimento do Evangelho de Jesus Cristo” (1Jo 2, 22), e com isto, abrindo caminho para certa liberdade pessoal, certa libertinagem, em buscar os “valores do mundo” (cf.1Jo 4,5; 2,15b-16)), pois, que para eles, na vida moral não havia pecado, nem mesmo julgamento de Deus.
O objetivo e temas da carta: Neste contexto o autor (autores) 1Jo, escreve para “advertir as comunidades cristãs em relação a esses falsos profetas e mestres”, a esses “anticristos”, infiltrados nas comunidades (1Jo 2,19), que não reconhecem o Jesus, humano e histórico, que dissociavam Jesus que viveu entre nós do Cristo da fé. Assim, separavam o “homem Jesus” da história, não reconhecendo “Jesus Encarnado”, isto é, o Jesus humano e histórico que peregrinou desde a Galileia até a Judéia revelando o Reino de Deus, do Cristo da fé, o Ressuscitado que permanece em nós; que separavam a vida de fé da vida prática, perdendo o sentido do “amor ao próximo”, pois, para eles bastava “amar a Deus”, provocando separações e abandono da comunidade cristã.
Escreve para desautorizar os que ensinavam que para se salvar bastava “um conhecimento religioso e pessoal de Jesus Cristo”; que acreditavam e faziam crer que Jesus é apenas “Espírito”, portador do conhecimento que salva; que bastava o “conhecimento” para estar em “íntima comunhão com Deus, ser iluminado e livre do pecado”. Por isso, não haveria necessidade de se empenhar em “amar o próximo e na prática da justiça”.
Escreve para fundamentar que a vida cristã acontece na “comunhão com Deus e com seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 4,15), que implica assumir a prática do “mandamento do amor (1Jo 3,23b; cf. Jo113,34; 15,17), pois é no amor fraterno que nos tornamos morada de Deus em seu Filho encarnado. Portanto, chamados a “dar testemunho de Jesus feito carne” pelo “amor ao próximo” (cf 1Jo 4,2). “O Amor ao próximo”, amor fraterno é o princípio fundamental da ação cristã (1Jo 3,11). A prática do amor ao próximo, vivido e transmitido por Jesus Cristo, o Messias encarnado, se opõe ao mundo do “maligno”, ao “ódio homicida” (1Jo 2,12-17; 3,12). Por isso, combater o “maligno” com o “amor fraterno” pode atrair perseguição, (1Jo3,13; cf. Jo15,18-19), porque o sistema escravagista do mundo greco – romano não aceita o testemunho dos seguidores de Jesus, o “Servo de Deus” (cf. Is 42.1-9).
Prólogo (1Jo 1, 1-4): “A experiência da Vida” - O autor começa a carta “convocando os sentidos (audição, visão e tato) para testemunhar Jesus. Jesus pôde ser escutado, visto, contemplado e tocado”. Jesus, portanto, é “pessoa concreta, Vida manifestada para todos”, que segundo o prólogo do Evangelho de João “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (João 1,4).
Primeira parte (1Jo 1,5-2,28): “Caminhar na Luz”: A carta afirma que “Deus é luz e nele não há trevas”; no Evangelho de João, “Luz” é título dado a Jesus “Eu sou a luz do mundo... (Jo 8,12). A luz é oposta às trevas: “Luz é sinônimo de vida e trevas são todas as realidades que se opõem à vida”. Para caminhar na luz é preciso: “estar unido a Deus e a Jesus e estar em comunhão com a comunidade”. Para caminhar na luz a carta apresenta quatro Passos: 1- “Reconhecer-se pecador” (1Jo 1,8-2,2); 2- “Amar” (1Jo 2, 3-11); 3- “Não amar o ‘mundo’” (1Jo 2,12-17); 4- “Cuidado com os Anticristos” (1Jo 2,18-28).
Segunda parte (1Jo 2,29-4,6): “Viver como filhos de Deus” – Esta parte introduz um novo tema,“ caminhar na justiça”. A prática da justiça faz ser Filhos de Deus (1Jo 2,29-3,2): “Ser filhos de Deus à semelhança de Jesus, o justo, é caminhar na justiça, ou, seja no amor”, pois “a justiça de Jesus consiste em amar e, como consequência desse amor, doar-se totalmente sem reservas”. Esta parte sugere, como na primeira, três passos, “romper com o pecado, amar e discernir” para nos tonarmos “filhos no Filho”: 1- “Romper com o pecado” (1Jo 3,3-10); 2- “Amar”, o amor fraterno marca vidacristã; amar o irmão é passar da morte para a vida (1Jo 3,11-24); 3 - “Os Anticristos pertencem ao mundo”; é preciso discernir o verdadeiro Espírito (1Jo 4, 1-6).
Terceira parte (1Jo 4,7-5,13): “Amor e fé” – estreitamente unidos, sob um único mandamento: “O mandamento é este: que tenhamos fé no nome do Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, conforme ele nos mandou” (1Jo 3,23). “O Amor” (1Jo 4,7-5,4) - “Deus é Amor” (1Jo 4.8.16). O amor de Deus é concreto e amar é fazer a experiência da essência divina em nós (1Jo 4,9). O amor fraterno permite permanecer em Deus que liberta de todo temor, pois, no amor não existe medo (1Jo 4,18). “A Fé” (1Jo 5,5-13). A fé traduzida no amor ao próximo, na experiência de amar e ser amado, faz vencer o mundo com suas injustiças. O “amor e fé” são “como colunas que sustentam a comunidade cristã”. Podemos dizer que o amor está referido “as relações entre as pessoas”, enquanto que “a fé toca as relações entre as pessoas e Jesus”. Neste sentido, “amor e fé”, abraçam todo tipo de relação e todas as dimensões da vida”.
Conclusão (1Jo 5,14-21): “Oração e discernimento” - o autor, faz um resumo da carta, retomando alguns temas: “pecado, nascer de Deus, Maligno, verdade, vida eterna...” O tema central da conclusão é a “oração”, isto é, “entrar em sintonia com o projeto de Deus”, é viver o que rezamos no Pai nosso: “seja feita a tua vontade” (Mt 6,10a), não como resignação, mas como compromisso. A oração ajuda a superar as fragilidades, fraquezas e limites, humanos, isto é, o “pecado que não conduz à morte”, cometido até por aquele que está empenhado com o projeto de Jesus. Pois, “o pecado que conduz à morte”, isto é, “a rejeição radical da proposta de Jesus” permanece, e por isso, não há oração. A carta termina com chamado ao discernimento num contexto de idolatria: “Filhinhos. Cuidado com os ídolos...”. Os cristãos, diante das provocações da realidade necessitam distinguir o “projeto de Deus”, que gera vida, do “projeto dos ídolos”, isto é, tudo o que se apresenta como “absoluto”, que gera morte.
Nota: Este trabalho é uma síntese sobre a 1Jo, que se encontra na Coleção “Como ler a Bíblia”: BORTOLINI, J. e BAZAGLIA, P. Como ler, AS CARTAS DE JOÃO- Quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus, Paulus, 2001. Páginas 46-774.