A Paz brota no chão do Cuidado
Esse ano, a Semana Franciscana da Paz tem como tema A Paz brota no chão do Cuidado. O texto abaixo traz alguns elementos, que ajudam a refletir sobre esse tema.
Nos últimos tempos, muito se tem falado sobre o cuidado, envolvendo todas as dimensões da vida humana e social, bem como da Casa Comum. Na mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, o Papa Francisco fala que não se trata apenas de ações pontuais, mas é necessário criar uma cultura do cuidado, onde a paz se torne possível. Entendemos a cultura, nesse caso, como uma espécie de “chão” com inúmeros nutrientes, onde possam germinar a justiça socioambiental, o diálogo, a solidariedade, a correta informação, o respeito às diferenças... e tudo mais que forma o grande jardim da irmandade universal.
Mas isso é possível no chão em que vivemos e caminhamos? Que inspiração podemos buscar em São Francisco, no que ele fez no chão do seu tempo? Que luzes nos vêm do ministério do Papa Francisco e da nossa experiência nesse tempo de pandemia?
Promover o bem comum
É importante destacar que a busca pela paz está estreitamente relacionada com o bem comum, que consiste, em primeiro lugar, na defesa e promoção dos Direitos Humanos. “O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis, orientados para o seu desenvolvimento integral” (LS, 157). Portanto, todas as sociedades e nações do mundo precisam estar nesta busca constante por melhores condições de vida do povo, tanto social e econômica, quanto de convívio e respeito com a natureza.
As diferentes religiões também compreendem que o bem comum significa viver em comunhão, compartilhar os bens e colocá-los a serviço da sociedade, principalmente dos pobres. A Bíblia nos lembra o valor e a dignidade de cada pessoa, e ressalta que a Criação é um dom de Deus e não se destina a um grupo de pessoas, mas é a Casa Comum de toda a humanidade.
Praticar a Justiça
O salmista diz com toda sabedoria: “Justiça e Paz se abraçarão” (Sl 85/84,11). E diz também: “Sem descanso procurem a Paz” (Sl 34/33,15).
A paz é fruto da justiça, mas vemos que a colheita ainda é pequena e exige novas semeaduras. Há Direitos Humanos, Sociais e Ambientais pouco respeitados ou nem mesmo reconhecidos. Nossa luta deve continuar, em âmbito global e também local, com a participação em grandes projetos e também com pequenas ações em nosso dia a dia.
A justiça inclui o direito à vida digna, que se desdobra em direito à educação, saúde, moradia, trabalho, lazer... Direito ao exercício da cidadania, à manifestação da fé, às expressões culturais.
Os direitos individuais são os que têm maior visibilidade, no entanto, não podem ferir os direitos sociais e mesmo os direitos da Casa Comum, a Mãe Terra. Conjugar esses direitos é hoje um dos grandes desafios, para as nações e para cada cidadão e cidadã.
Cultivar o Diálogo
Muitos conflitos, em todos os níveis, podem ser resolvidos ou amenizados com diálogo. A arte de saber ouvir, com abertura para acolher outras ideias e propostas, é um dos principais instrumentos na gestação da paz.
Muitos encontros entre pessoas e grupos, na verdade, não configuram diálogos, mas são “monólogos a dois” ou “monólogos grupais”. Cada pessoa ou grupo fala, apresenta suas ideias ou propostas, mas não ouve os demais, não interage, não percebe novas possibilidades.
Conhecemos o dito antigo que, infelizmente, ainda hoje é repetido: “Quem deseja a paz, prepare-se para a guerra”. Com base no Evangelho e na proposta franciscana, podemos modificar esse dito: “Quem deseja a paz, prepare-se para o diálogo”.
Esse caminho é luminoso, mas exige preparação, exige cultivo. Isso vale para o diálogo diplomático, tão necessário entre as nações, mas também para aquele diálogo indispensável no cotidiano, nas famílias, nos grupos, nas comunidades.
Foi o que fizeram Clara e Francisco, no relacionamento com seus irmãos e irmãs de caminhada e também com os pobres, com os ministros da Igreja e com todas as criaturas. Francisco foi mais além e desafiou a tática das Cruzadas, quando buscou o diálogo o Sultão do Egito para promover a paz.
Semear Solidariedade
Em uma videomensagem, o Papa Francisco afirmou: “A existência de cada um de nós está ligada à existência dos outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro” (TED Vancouver 2017).
Também sabemos, por experiência, o quanto nossa vida está ligada à de outras pessoas, das quais dependemos para nossa sobrevivência. Percebemos isso com mais clareza agora, neste tempo de pandemia, quando muitos de nossos irmãos e irmãs vivem aflitos, em busca de meios para sobreviver. Os meios de comunicação falam pouco, mas sabemos que muitas pessoas estão morrendo por falta do bem mais elementar, que é a alimentação.
Infelizmente não faltam alimentos, mas eles não chegam à mesa de todos devido à ganância de alguns, à má distribuição da renda, à ausência de justiça e solidariedade. E sabemos que a paz é fruto não só da justiça, mas também do amor solidário. Aquele amor que vai além da própria justiça.
O Papa Francisco explica: “A solidariedade exprime o amor pelo outro de maneira concreta, não como um sentimento vago, mas como a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos.A solidariedade ajuda-nos a ver o outro – quer como pessoa, quer, em sentido lato, como povo ou nação – não como um dado estatístico, nem como meio a usar e depois descartar quando já não for útil, mas como nosso próximo, companheiro de viagem, chamado a participar, como nós, no banquete da vida, para o qual todos somos igualmente convidados por Deus” (Dia da Paz 2021).
Vencer preconceitos e discriminações
Para criar um chão favorável à paz, sentimos a necessidade de romper com padrões, às vezes milenares, que discriminam pessoas, grupos e povos, por suas condições ou opções sociais, políticas, religiosas, étnicas, geracionais, de gênero...
À luz do Evangelho, sentimos também a urgência de abandonar ou superar antigos valores moralizantes, que discriminam e excluem, colocando obstáculos no caminho da irmandade, da justiça e da paz.
A proposta de vida francisclariana é inclusiva e misericordiosa, vence toda forma de discriminação e preconceito, todo julgamento impiedoso e moralizante.
Cuidar da Mãe Terra
Quando Francisco de Assis fala da terra, no Cântico das Criaturas, ele o faz com reverência e a chama de Mãe e Irmã. Esse chão nos é dado para ser cuidado e cultivado (Gn 2,15). Hoje, essa Mãe e Irmã está ferida, machucada, explorada – e com ela todas as pessoas e todas as criaturas. Precisamos voltar a cuidá-la e cultivá-la para que ela viva a sua vocação.
O Papa Francisco, na Laudato Si´, ao propor ações para uma educação e espiritualidade ecológicas, traz presente a Carta da Terra (29.06.2000), que convida todas as pessoas a começar de novo, deixando para trás a autodestruição, e nos propõe o mesmo desafio.
O n. 207 desta encíclica renova o compromisso da Carta da Terra: “Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (...). Que o nosso tempo seja um tempo que se recorde pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida”.
A arquitetura e o artesanato da Paz
A Fratelli Tutti diz que existe uma “arquitetura” e um “artesanato” da paz (n. 231). Isto significa que a paz é responsabilidade dos governantes dos povos, do poder público, das instituições e forças organizadas da sociedade, que devem criar toda sorte de mecanismos – econômicos, políticos, socioambientais, religiosos... – que coloquem alicerces e colunas que sustentem a paz. Mas é responsabilidade também de cada pessoa, família e pequeno grupo, que vão construindo a paz de forma artesanal, com ações miúdas que fazem toda diferença.
É responsabilidade também nossa, que seguimos Jesus Cristo do jeito de Clara e Francisco de Assis! Que a celebração da Semana da Paz nos ajude a renovar esse compromisso.