“Eu gostaria de visitar o meu povo Bororo pela última vez.”
O amor de Irmã Maria pelos indígenas Bóe-Bororo, com quem ela viveu na Aldeia Korogedu Paru (Córrego Grande) durante 23 anos, mobilizou nossas memórias e emoções.
No último dia 07 de fevereiro, ela completou 97 anos de vida e fez um pedido. Queremos compartilhar, neste texto, esse fato revelador da capacidade humana de amar, ter gratidão, viver em paz, harmonia, amizade e alegria com os outros, apesar das diferenças étnicas, religiosas e de gênero.
Irmã Maria, cujos dois nomes étnicos tradicionais são Čibaibo (Arara Vermelha) e Tuwagówudo (Estrela da Manhã), mesmo estando enferma e com as suas forças físicas reduzidas, pediu um presente para as suas cuidadoras e irmãs da Congregação das Catequistas Franciscanas: “Eu gostaria de visitar o meu povo Bororo pela última vez.”
O desejo da Irmã Maria foi realizado no domingo (10/02/2024).
Surpreendentemente, a mulher que estava acamada com dores insuportáveis, levantou-se às 04h30m da manhã e caminhou com determinação.
Na Aldeia, a Comunidade nos recebeu no báito (a Casa Cerimonial Tradicional Bóe-Bororo). Entre abraços e lágrimas de alegria, iniciou-se o ritual de boas-vindas: uma mulher entoou, ao som do “bapo” (chocalho) tocado por um homem, o canto de gratidão. As pessoas presentes rodearam Čibaibo Tuwagówudo e a reverenciaram.
O cacique da Aldeia falou sobre o legado da professora que chegou lá em 1980, quando as crianças não eram alfabetizadas. “Ela chegou aqui, construiu a escola de palha com a ajuda dos nossos pais e morou dentro dela, do mesmo jeito que nós vivíamos”, relatou o cacique Benedito Bakorokarw.
O primeiro professor indígena Bóe Bororo, Bruno Tavie, lembrou que Maria Ossemer quis ensinar as crianças a escrever na língua Bóe e, por isso, ele foi “contratado” para ser auxiliar dela. Mais tarde, Bruno, ao estudar na Faculdade, descobriu que Čibaibo foi uma professora pioneira no ensino bilingue, em Mato Grosso e no Brasil.
Entre tantas boas lembranças, outro momento emocionante foi quando chegou, ao báito, o iedaga (padrinho) de Irmã Maria: o ancião Floriano, que lhe deu o nome de Tuwagówudo. Ele se aproximou dela com o seu jeito Bóe de Ser e ambos se abraçaram demoradamente. Depois de conversarem um pouco, enquanto Ossemer agradecia a todos pela acolhida, Floriano permaneceu em pé, na frente dela, olhando-a no rosto.
Após atender a todos e a todas com abraços e pousando para fotos, pacientemente e sorrindo, ela fez outro pedido surpreendente: “Eu quero dar uma volta em torno do círculo de casas da Aldeia e ver o Córrego Grande”, disse Irmã Maria. E concluiu: “Acho que essa é a última vez que eu virei aqui. Eu quero dizer que sinto muita saudade de vocês. Eu choro todos os dias e todas as noites de saudades de vocês. Eu amo vocês de todo o meu coração, com toda minha alma. Aqui eu vivi os melhores dias da minha vida. Agradeço o canto ritual de boas vindas que me fizeram hoje. Eu sei que vocês são assim. Todos os braedos (brancos) deveriam aprender com vocês a demonstrar os sentimentos de acolhimento e gratidão”.
Com lágrimas nos olhos, Irmã Maria caminhou lentamente até o carro que a levou para dar a volta na Aldeia. O círculo da caminhada se fechou em Córrego Grande, onde se banhava, lavava suas roupas, pegava água para fazer comida, pescava e brincava com as crianças. Ela rodeou a Aldeia e, nas águas do Korogedu Paru, suas lágrimas de adeus se misturaram ao tempo.
Ao chegar em Rondonópolis, a chuva parecia ser um pranto derramado do céu. Talvez um choro de tristeza e ao mesmo tempo de alegria. Ao nos despedirmos, ela me abraçou, deu um beijo em meu rosto e falou: “Obrigado, Paulo Isaac. Agora eu posso morrer em paz”.
É, mas uma coisa é certa: ela vive e sempre viverá enquanto existir Bóe-Bororo de Korogedu Paru.
Paulo Augusto Mario Isaac – Doutor em Antropologia, professor aposentado da UFMT e membro da Academia Rondonopolitana de Letras. É o autor do livro “Irmã Maria Čibaibo Ossemer – uma missionária franciscana entre os índios Bóe-Bororo de Mato Grosso”. WattsApp: (66) 99933-1333 – e-mail: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
Comentários
Assim a chamávamos na década de oitenta. Sempre serena e sorrindente, nada de glamour, a não ser o glamour de ser Filha de Francisco de Assis.
Fez-se pobre com os pobres e indígena com os indígenas.
Uma grande mulher, uma grande religiosa, um grande ser humano.
Me emocionei o ler o relato. Maria , estrela da manhã, merece todo esse carinho.
A semente ao cair em boa terra sempre geminará e dará muito frutos.
Parabéns Irmãs Catequistas Franciscanas