São Paulo, 21 de junho de 2013
Caríssimos irmãos, Paz e Bem!
Assunto: A postura franciscana diante dos últimos acontecimentos
Diante da situação que vivemos em âmbito nacional, com os reiterados protestos que se iniciaram na semana passada e se tornaram intensos e de dimensões incalculáveis nesta semana, venho, com toda humildade e de modo fraterno, propor alguns critérios franciscanos que possam iluminar o momento de instabilidade, mas principalmente de esperança, que estamos atravessando. Como irmãos menores, pacíficos e humildes, não tenho dúvida de que podemos oferecer, a modo de nosso Seráfico Pai, significativa contribuição neste conflituoso, porém fecundo, contexto. À medida que, pela profissão, consagramos nossa vida à proposta de sermos “Portadores do Dom do Evangelho” (Cf. Documento Final do Capítulo Geral de 2009), é nosso dever discernir os sinais dos tempos e partilhar este dom que recebemos por liberalidade do Senhor.
E é com este espírito que desejo partilhar com vocês esta singela reflexão. Olhando para Francisco e para a realidade, apresento quatro critérios que podem nos orientar diante dos últimos acontecimentos. Peço aos irmãos que busquem sempre o discernimento e que procurem, em todos os ambientes onde atuamos, olhar com carinho para estes critérios que agora proponho.
1) PROMOÇÃO DA PAZ E DA JUSTIÇA
Repercutindo a sentença profética de Isaías (“A Paz é fruto da Justiça” – Is 32,17), chamo atenção para os termos que compõem este primeiro critério. Promover é colocar em movimento. Faz lembrar a ação do Espírito, que é sopro, vida, movimento, dinamismo e vigor. Portanto, já se percebe desde então que a paz é uma construção, individual e coletiva, que pressupõe o amálgama da justiça.
Sendo assim, promover a paz em nada se relaciona com a ação superficial de se colocar “panos quentes” na situação com o objetivo de se manter uma “paz ilusória” e pautada na desigualdade e na injustiça, com a manutenção dos mesmos privilégios para poucos e das muitas privações para inúmeros. Não passa por este caminho a promoção da paz.
Francisco orienta seus frades a cultivarem com intensa dileção a “Paz interior”, através da oração, da meditação e do discernimento. Que busquemos esta Paz que só o Senhor nos pode dar e, a partir dela, procuremos contemplar estes acontecimentos com a clareza e o senso crítico que eles exigem de nós. Interiormente pacificados, teremos melhores condições de nos colocar em diálogo com os inúmeros interlocutores que o Senhor nos apresenta em nossa Missão Evangelizadora. Junto ao exercício místico, busquemos nos informar em profundidade acerca do que vem ocorrendo, a fim de que possamos ser propositivos, coerentes e fundamentados em nossas colocações. Sejamos amorosos e proféticos no anúncio da paz que é fruto da Justiça.
2) PRIORIDADE AO DIÁLOGO EM TODA E QUALQUER SITUAÇÃO
Francisco jamais abriu mão do diálogo. Viveu entre os pobres e excluídos, encontrou-se com autoridades civis e eclesiásticas, escreveu aos governantes, foi ao encontro do sultão no Oriente arriscando a própria vida. Era capaz desta postura porque se sentia totalmente livre no Senhor. Não tinha apegos e interesses que pudessem se interpor na busca de um diálogo franco e transparente. Entendendo-se como irmão de todos, a partir da fraternidade, ouvia a todos e também não se furtava em manifestar a quem quer que fosse suas convicções e intuições, tudo pautado no discernimento e na largueza de coração de quem buscava ser coerente com Deus e com as pessoas.
Que nós sejamos também promotores do diálogo. Saibamos ouvir e também nos posicionar de acordo com os apelos do Evangelho. Dentro de nossa possibilidade e em cada de campo de atuação onde estamos presentes, tenhamos o cuidado de privilegiar esta forma de interação humana madura, inteligente e produtiva, marcada pelo respeito às diferenças e pela capacidade de escuta.
3) RESPEITO ÀS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS E RECUSA À VIOLÊNCIA
Francisco tinha espírito revolucionário. Depois de pegar em armas para lutar, por influência do pai e do ambiente onde vivia, em duas guerras que lhe poderiam gerar (Mas não geraram!) inestimáveis ganhos sociais, tocado no coração pelo Senhor, mudou completamente seu modo de ação. Apropriou-se da Paz que Deus lhe concedeu sem, portanto, retê-la para si e, pacificamente, manteve-se fiel a seu espírito revolucionário, tanto que implementou mudanças inusitadas e inimagináveis no seio da Igreja e da sociedade.
Nossa democracia ainda está em processo de amadurecimento mas, com a graça de Deus e nossos esforços, já demos passos consideráveis a ponto de termos liberdade e possibilidade de expressar nossos pensamentos e valores. As instituições e mediações que garantem esta liberdade possuem muitas fragilidades, mas são os meios de que dispomos para implementar as mudanças sonhadas. Qualquer precipitação neste campo, a recusa ao diálogo e ao reconhecimento das mediações democráticas, a pressa em se promover mudanças históricas que não ocorrem de uma hora para outra, a falta de senso crítico diante dos muitos interesses em jogo nesta luta pelo poder podem compor um perigoso cenário cujas consequências seriam desastrosas para o país e, consequentemente, para o povo. Estejamos atentos!
4) PROPAGAÇÃO DA LÓGICA DO DOM
“Deus ama a quem dá com alegria” (2Cor 9,7b). A afirmação de São Paulo neste texto remete à lógica do dom, da generosidade, tão cara a Francisco. Além de ser amado por Deus, quem consegue viver a partir da ótica da generosidade geralmente se torna uma pessoa leve, alegre, de bem consigo mesma, capaz de amar e ser amada. Não se prende a bens materiais, a posição social, a cargos de poder e comando. Sabe partilhar, percebe as necessidades do outro e faz o possível para atendê-las. A lógica do dom é fonte de liberdade e realização.
Se vivêssemos em sintonia com a virtude da generosidade, com certeza todos os protestos que temos presenciado seriam desnecessários. Eles ocorrem porque a injustiça produzida pela mentalidade do lucro, da concorrência, da exploração e do egoísmo está chegando ao patamar do insuportável. As passagens vão voltar ao preço anterior ao aumento no Rio, em São Paulo e em muitas outras cidades brasileiras, o que representa um importante passo no amadurecimento de nosso povo.
No entanto, independente de credo religioso, é mais do que urgente que a lógica do dom passe a vigorar nas mentes e nos corações humanos. Disto depende a justiça, a paz e a harmonia entre as pessoas e também a sobrevivência do planeta. Não é uma tarefa fácil, que possa ser empreendida pela força ou por um decreto. Deve nascer da consciência de cada um, para o bem individual de quem assume e pratica a generosidade e para o bem geral da nação e do planeta.
De coração aberto, reforço o pedido aos irmãos para que busquem tratar destes temas nos diferentes espaços onde atuam. Nas paróquias e santuários, que se procure tratar destes critérios nas celebrações – em especial nas homilias – e reuniões. Que também tenhamos a coragem de levar esta discussão para os meios de comunição que são por nós dirigidos ou nos quais tenhamos presença. Com relação à nossa Frente de Evangelização da Solidariedade com os empobrecidos, tenho percebido com alegria o engajamento dos frades e trabalhadores do Sefras em todo este processo, de forma especial na cidade de São Paulo. Sigamos em frente com paixão e discernimento. Peço também que em nossas casas de formação este tema seja abordado nos encontros formativos e que também em nossas escolas, na Universidade São Francisco e na FAE, se busque, a partir das mediações curriculares, acadêmicas e pastorais que temos à disposição, contemplar, sob a luz destes “critérios franciscanos”, o momento que estamos atravessando. A nossos irmãos em missão em outros países e realidades (em especial em Angola), recomendo-nos às suas orações e que permaneçamos em sintonia e comunhão.
Sem mais, despeço-me e deixo minha bênção paternal e fraternal, com o coração cheio de esperança e com firme certeza de que em todos estes acontecimentos o Senhor nos interpela e nos convida a assumirmos com qualidade e competência nossa vocação de irmãos menores.
Com estima fraterna, em Cristo e em Francisco,
Frei Fidêncio Vanboemmel, OFM
Ministro Provincial
Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil