Experiência de pesquisa e militância acadêmica
Escrever este texto no mês de novembro é bastante significativo, pois o dia 25 marca o início dos 16 Dias de Ativismo, com campanhas globais pelo fim da violência de gênero. Essa data representa um marco na luta global contra a violência de gênero e reforça a urgência de ações efetivas para erradicar todas as formas de violência contra as mulheres.
O conceito de violência de gênero se refere às violências que têm como base as relações desiguais de gênero e de poder. Isto é, trata-se de qualquer tipo de violência (física, social ou simbólica) que tem por base a organização social dos sexos e que seja perpetrada contra indivíduos especificamente em virtude do seu sexo, identidade de gênero ou orientação sexual.
A violência de gênero contra as mulheres não é um fenômeno restrito ao ambiente doméstico, mas atravessa todos os espaços da vida social, inclusive o espaço universitário. Trata-se de um fenômeno global que desafia os princípios de equidade, respeito e dignidade humana, que deveriam orientar o ambiente acadêmico. Isso mostra que a universidade não é um lugar seguro para as mulheres, porque nela se reproduz o machismo presente nas estruturas sociais.
Nas universidades do Brasil esse fenômeno tem se tornado visível a partir de 2014, com as recorrentes denúncias de jovens estudantes acerca de estupros, humilhações e assédios sexuais que ocorreram durante festas universitárias, especialmente em universidades paulistas, e com a divulgação de uma pesquisa nacional realizada pelo Instituto Avon/Data Popular que envolveu a participação de 1.680 estudantes, sendo 60% do sexo feminino e 40% do sexo masculino.
A Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, reconheceu formalmente a violência contra as mulheres como uma das formas de violação dos direitos humanos. Isso porque ela afeta um conjunto de direitos como a vida, a dignidade humana e a saúde física e mental e, quando ocorre no espaço universitário, afeta também o direito à educação, uma vez que ela impacta o desempenho acadêmico ou mesmo na desistência das jovens do ensino superior, como pode ser observado no relato de uma estudante, retirado de uma notícia online, publicada em 2023. "Não posso circular tranquilamente pela universidade e, pelo que eu saiba, outras meninas foram vítimas de assédio pelo mesmo rapaz. A universidade não nos dá suporte algum. Fico a imaginar quantas meninas já desistiram de suas vidas acadêmicas por conta de abusadores e da defesa da universidade aos agressores."
Isso mostra que as jovens, além de sofrerem a violência direta, também sofrem a violência institucional, porque muitas vezes a universidade é negligente ou silencia os fatos para não "manchar sua visibilidade social", protegendo os agressores.
Os estudos que tenho realizado mostram que na universidade a violência de gênero se manifesta sob a forma de agressão física e psicológica, estupros, assédio sexual, assédio moral, misoginia, sexismo, desrespeito e desqualificação intelectual, acesso desigual a recursos de pesquisa e bolsas de estudos, dentre outros. Ela ocorre tanto na relação horizontal entre estudantes, quanto na relação vertical ou de poder, envolvendo professores e estudantes.
As pesquisas, a pressão dos coletivos feministas e as denúncias públicas de casos de assédios sexuais e estupros, no espaço universitário, têm levado, em alguns casos, à responsabilização dos agressores, tanto em punições mais brandas, como afastamento e advertência, como à demissão, inclusive de professores que tinham grande status dentro de universidades. Só que isso não é uma normativa geral, pois há muito silenciamento e naturalização das violências.
Considero que pesquisar e discutir essa temática com a comunidade acadêmica, estudantes e pesquisadores/as é importante para dar maior visibilidade a essa problemática e para comprometer as universidades com a elaboração de políticas institucionais, tanto de prevenção quanto de enfrentamento das violências, como uma forma de erradicar e questionar as formas de violência de gênero presentes na sociedade.
Nos últimos anos, tenho assumido essa causa como uma das vertentes de minhas pesquisas e do debate acadêmico, em vista de contribuir com espaços mais saudáveis e igualitários. E isso é uma forma de expressar a vivência de nosso carisma de Irmã Catequista Franciscana no campo da educação superior, tendo como interlocutores jovens e mulheres. Tenho envolvido jovens estudantes nessas pesquisas por meio de bolsas de iniciação científica, cuja temática tem desenvolvido nas estudantes uma nova consciência em relação aos direitos das mulheres. Algumas, já se formaram e continuam comprometidas com essa causa.
Nas pesquisas, junto com as estudantes, tenho assumido duas frentes: uma foi o mapeamento de políticas institucionais de enfrentamento das violências de gênero nas universidades, visando dar visibilidade ao quanto as universidades estão comprometidas ou não com o enfrentamento das violências nos espaços acadêmicos, bem como apontar a necessidade de políticas institucionais mais eficazes. A segunda frente, que está em andamento, é o levantamento e a análise de relatos publicados na internet sobre as denúncias feitas por estudantes, para identificar os tipos mais recorrentes de violências, os principais agressores, as formas de denúncias e o impacto para a saúde mental e desempenho acadêmico.
Sendo pesquisadora dessa temática passei a integrar uma rede nacional de pesquisadoras do Observatório do INCT Caleidoscópio: Instituto de Estudos Avançados em Iniquidades, Desigualdades e Violências de Gênero e Sexualidade e suas Múltiplas Insurgências, que tem como objetivo a produção, análise e divulgação de indicadores de violências e vulnerabilidades que atingem mulheres no mundo da ciência, com vistas a compreender as questões que afetam a vida pessoal e a carreira deste grupo em diferentes dimensões.
Os resultados dessas pesquisas têm gerado artigos publicados em revistas científicas. Isso tem me tornado uma das referências sobre o tema, de modo que não somente tenho discutido essa questão em eventos científicos, mas também tenho sido convidada para podcasts e para abordar essa temática em seminários de grupos de pesquisas de outras universidades e até mesmo em palestras, no regime de colaboração científica.
Considero que um trabalho importante foi a elaboração do caderno pedagógico e didático, intitulado, "Violências de gênero nas universidades: Prevenção e Enfrentamento", que objetiva contribuir com a desnaturalização da violência e com a formulação de políticas institucionais de prevenção e de enfrentamento às violências de gênero no ambiente universitário. O caderno é destinado para estudantes universitários/as, professores/as e agentes administrativos, com vistas à construção de uma universidade como espaço de liberdade e garantia dos direitos humanos. Nele se encontra a definição de conceitos relacionados às violências de gênero, informações e orientações úteis para estudantes que passam por situações de violências no ambiente universitário; sugestões de medidas a serem adotadas pelas instituições acadêmicas; iniciativas de boas práticas mapeadas em universidades brasileiras, que podem inspirar políticas em outras universidades que ainda não estão mobilizadas diante das violências que ocorrem no espaço universitário. Também apresenta marcos legais internacionais e da legislação brasileira, bem como materiais informativos sobre o tema, como vídeos e filmes. É importante ressaltar que esse material motivou minha universidade a realizar a primeira campanha contra assédio sexual no ambiente acadêmico.
Socializei, aqui, uma parte de minha missão na universidade, que tem muitas dimensões, para além de dar aula e orientar pesquisas. Sei que cada uma é parte dessa missão que realizo na universidade, porque ela é expressão de um carisma coletivo, que tem muitas facetas. Mas, juntas, estamos fazendo a nossa parte como peregrinas da esperança, sendo protagonistas de uma missão que transcende muros universitários que é a construção de uma sociedade justa, plural e igualitária, onde todas as pessoas possam viver plenamente sua dignidade e seus direitos.
Deixo o site para quem quer acessar os artigos e a cartilha: https://estudosgeneroeducacao.pro.br/
