Um Chamado Franciscano à Reconstrução da Humanidade
Vivemos um tempo de contradições agudas. A humanidade nunca falou tanto em liberdade, igualdade e dignidade, mas milhões de pessoas continuam sem acesso à terra, ao alimento, à moradia, ao trabalho e à paz. As guerras se multiplicam, as migrações forçadas crescem, a natureza agoniza. A sensação de impotência e desesperança se espalha como sombra sobre as sociedades. É nesse contexto que os direitos humanos, que nasceram como resposta às tragédias do século XX e às longas histórias de opressão, precisam ser revisitados como linguagem da esperança. Eles não são apenas um corpo de normas jurídicas internacionais, mas a expressão coletiva de um compromisso com a vida. A espiritualidade franciscana oferece uma lente singular para essa releitura: ela nos recorda que toda pessoa é irmã e todo ser é digno. Defender os direitos humanos é, portanto, um ato de fé no valor da vida, um exercício de esperança encarnada. É afirmar que, apesar de toda violência, ainda podemos escolher a ternura, a escuta e a fraternidade.
1. A Esperança como Força Histórica e Espiritual
A Esperança não é espera passiva. É movimento. É ato político e espiritual que nasce do inconformismo diante da dor. São Francisco de Assis, em um tempo de guerras e hierarquias rígidas, fez da esperança um modo de viver. Sua escolha radical pela pobreza, sua proximidade com os leprosos e o diálogo com o sultão Malik al-Kamil, em plena cruzada, foram gestos profundamente humanos e proféticos. Ele acreditava que a paz era possível, mesmo entre os que se viam como inimigos. Essa esperança ativa se aproxima do que Paulo Freire chamou de “esperançar”, não esperar que algo aconteça, mas agir para que aconteça. É a esperança que move as pessoas defensoras de direitos humanos, que permanecem firmes diante de ameaças, criminalizações e perdas, acreditando que a dignidade humana não pode ser silenciada. Na espiritualidade franciscana, essa esperança é inseparável da humildade. Esperar é reconhecer que ninguém se salva sozinho. É caminhar junto, com fé e paciência, sem abandonar a luta. E é nesse caminhar que os direitos humanos ganham sua verdadeira força: não apenas como promessa legal, mas como prática cotidiana de solidariedade.
2. Direitos Humanos: Memória da Dor e Projeto de Futuro Os direitos humanos nascem de uma história de sofrimento coletivo. A Declaração Universal de 1948 foi redigida após as duas grandes guerras, como compromisso de que a barbárie jamais se repetiria. Mas, muito antes dela, as vozes dos povos oprimidos, indígenas, escravizados, camponeses, mulheres, já denunciavam injustiças e anunciavam dignidades. Hoje, esse marco universal se desdobra em tratados e convenções que reconhecem direitos civis e políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Falar de direitos humanos é, portanto, falar de vida concreta: do direito à terra, à moradia, à liberdade religiosa, à diversidade, à educação, à saúde, à igualdade racial e de gênero, à autodeterminação dos povos e à proteção da casa comum. Contudo, entre o texto da lei e a vida das pessoas, há um abismo. Milhões ainda sofrem com a fome, a violência, o racismo, o trabalho escravo contemporâneo, o feminicídio, a negação do refúgio, o colapso ambiental e o desmonte das políticas públicas. A esperança franciscana nos convida a olhar esse abismo sem negar sua dor, mas sem perder a fé na possibilidade de transformação. Como Francisco, que viu beleza mesmo nas ruínas, somos chamados a reencantar a linguagem dos direitos humanos, devolvendo-lhe alma, compaixão e sentido comunitário. Igualmente, nos convida a reaproximar os direitos humanos das pessoas reais, a enxergar neles não apenas um conjunto de leis, mas uma linguagem de cuidado e de compromisso. É preciso escutar as vozes das periferias, das mulheres, das pessoas negras, das populações tradicionais, dos migrantes, das pessoas em situação de rua - vozes que nos lembram que o sofrimento nunca é apenas estatística, é sempre rosto, nome, história. Direitos humanos não são apenas declarações; são processos de reconstrução permanente da humanidade. Cada conquista é fruto de resistência e memória. Cada violação é um chamado à conversão ética e social.
3. O Cuidado como Núcleo Ético dos Direitos Humanos
A espiritualidade franciscana nasce do cuidado: cuidado com o outro, com a criação, com os mais pobres e com a própria interioridade. Francisco chamou o sol de irmão, a lua de irmã e o leproso de companheiro. Essa visão de interdependência revela uma compreensão radical dos direitos humanos: o direito de um é responsabilidade de todos. Em uma sociedade marcada pelo individualismo e pela lógica da indiferença, o cuidado torna-se uma linguagem política. Ele traduz o mandamento do amor em ação concreta. Cuidar é reconhecer a vulnerabilidade comum. É perceber que a liberdade individual não existe sem justiça social. É compreender que o sofrimento de um povo, de uma floresta ou de um rio é também ferida na humanidade inteira. O Papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti, retoma esse espírito ao afirmar que a fraternidade e a amizade social devem orientar a vida pública e as estruturas do mundo. Os direitos humanos, sob essa luz, são instrumentos para transformar o cuidado em política e a compaixão em norma de convivência. Quando olhamos os direitos humanos pela lente do cuidado, eles ganham nova profundidade. Deixam de ser apenas exigências jurídicas para se tornarem relações de responsabilidade. Cuidar é reconhecer que o destino do outro me diz respeito. Em cada gesto de defesa da vida, quando uma advogada acompanha uma mulher vítima de violência, quando uma professora ensina sobre respeito, quando uma comunidade se une para proteger a natureza, a esperança ganha corpo. É assim que a fraternidade se faz concreta.
4. Direitos Humanos e os Desafios do Nosso Tempo
A defesa dos direitos humanos enfrenta hoje novos desafios. Crescem os discursos de ódio, as tentativas de criminalizar movimentos sociais e a banalização da violência. A desinformação enfraquece a confiança nas instituições e alimenta o medo do outro. No Brasil, o cenário é particularmente sensível. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionário, defensores de direitos humanos, lideranças camponesas e povos originários seguem sendo alvos de assassinatos e perseguições. A fome voltou a atingir milhões de pessoas, e a desigualdade racial e de gênero continua estrutural. Essas realidades exigem que os direitos humanos sejam vividos como prática de esperança política, não apenas reivindicação jurídica, mas resistência espiritual e coletiva. A esperança, aqui, é ato de rebeldia pacífica: é escolher o diálogo em meio ao ódio, o cuidado em meio à indiferença, a justiça em meio à exclusão. Ser franciscano, nesse contexto, é exercer a “ternura política” de que fala o Papa Francisco, a capacidade de agir com firmeza e compaixão ao mesmo tempo. É afirmar que a dignidade não é privilégio, é condição essencial da vida. A esperança franciscana não é fuga da realidade; é mergulho nela. É presença junto aos que sofrem. É reconstrução da casa comum com as mãos feridas, mas ainda abertas.
5. A Política da Esperança e o Projeto de Fraternidade A esperança, quando se torna ação, gera transformação. Ela é fundamento de uma política diferente, uma política que reconhece o outro, que constrói pontes, que aposta na escuta. Os direitos humanos, quando inspirados nessa política da esperança, deixam de ser um discurso técnico e se tornam projeto de convivência fraterna. Eles nos chamam a reconfigurar o modo de estar no mundo: das relações econômicas ao uso do território, das formas de governo às práticas comunitárias. A tradição franciscana nos ensina que tudo está interligado. O cuidado com os pobres, com os animais, com o ambiente e com os povos são dimensões inseparáveis. Assim, o direito à vida plena inclui o direito ao ambiente equilibrado, ao trabalho digno, à cultura, à memória, à espiritualidade e à paz. Essa visão amplia o horizonte dos direitos humanos para além do antropocentrismo e os insere na lógica da ecologia integral: tudo o que fere a terra, fere também os pobres; tudo o que fere os pobres, fere o próprio Deus. Por isso, lutar por direitos humanos é lutar por um novo pacto civilizatório, que una justiça social, cuidado ecológico e solidariedade global. É praticar a esperança como método e horizonte. A esperança é, no fundo, o nome político do amor.
Esperança Encarnada
A esperança, na tradição franciscana, não é ilusão, é compromisso. É o gesto de plantar mesmo sem saber se veremos a colheita. É acreditar na possibilidade de reconstrução, mesmo depois das ruínas. Os direitos humanos, quando vistos a partir dessa esperança, são expressão da fé na humanidade. São a tentativa de tornar institucional o sonho da fraternidade universal. Mas para que esse sonho continue vivo, precisamos cultivar uma esperança encarnada: aquela que escuta, que se indigna, que age, que cuida. Como Francisco e Clara de Assis, somos chamados a reconstruir a casa comum, a reacender a chama da solidariedade, a fazer da justiça um ato de amor. A esperança, então, se torna o rosto humano dos direitos: o rosto que acolhe, protege, promove e integra. E talvez essa seja a mensagem mais necessária para o nosso tempo: a esperança é o outro nome do amor que se organiza para defender a vida.
