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16 Abril 2014
Era quinta feira Santa...

São José é uma pequena comunidade da cidade do Kuito (Angola) onde, num lugar um tanto afastado, existem algumas casas em que vivem pessoas com deficiência causada pela hanseníase. Algumas, ainda estão em tratamento.

Nossa fraternidade, sempre que podia, marcava presença, pois, além de podermos partilhar um pouco do que tínhamos e de nosso tempo, com aqueles irmãos e irmãs, era sempre um aprendizado estar naquela realidade tão desafiante.

É intraduzível por palavras a situação em que viviam aquelas pessoas. Um descaso total das autoridades. Estavam abandonadas, em condições desumanas. Por outro lado, não sei explicar, mas havia algo de divino, naquele lugar e naquelas pessoas.

É claro que Deus se contorcia em suas entranhas (Jr 4,19), ao ver tamanha insensibilidade humana, para com seus filhos e filhas; porém, ali a sua luz brilhava, não só na sua imagem ferida, mas nas relações humanas ali existentes, no jeito como a vida era encarada, no carinho gratuito que as crianças recebiam de seus avós e, na debilidade fortificada por gestos lindos de pequenas partilhas.

Ali, o que tinha mesmo sentido era o sorriso de tio Sapalo, sem mãos e sem pés, falando de suas aventuras do tempo de juventude. E ainda, as lágrimas de Mendes, de 37 anos que, segundo seu desabafo, desde que contraiu a hanseníase, nunca mais ninguém o olhou com amor. Impossível também não ver Deus, nos olhos desesperançados de tia Teresa, magérrima, mas ainda assim, preocupada com sua netinha em estado febril; ou então, ver tio Soares arrastando-se do jeito que podia, para plantar milho, já sonhando com o florescer das espigas; e ver as tias Natália, Balbina, Esperança e Guilhermina, na sua lavra comunitária, soltar as enxadas e, felizes, começarem a dançar, porque a Irmã estava chegando com um frugal mata-bicho. Como não ver Deus no sorriso escancarado de tia Beatriz, com um só dente chupando cana, sabe lá Deus como! Ou então, ver tio Antonio, todo orgulhoso de sua originalidade e sabedoria, a traduzir o umbundu para a Irmã tchindele . Deus em pessoa era o amor de tia Julia e tio Julino, um casal que não se acanhava de mostrar que viviam um grande amor, e tinham grande cuidado um com o outro. E não teve quem não se compadecesse e não fosse dar seu abraço solidário ao tio Julino, quando tia Julia desapareceu fisicamente.

Muito ainda se poderia dizer das flores lindas que vimos surgir desta margem, também de flores que foram sendo plantadas pela solidariedade por diversos grupos e pessoas, em particular junto às sete casas, mas fico por aqui, concluindo com uma experiência que, para mim, foi extremamente importante.

Era uma quinta-feira santa. Dia em que sinto uma gratidão muito grande pelo gesto redentor de Jesus e por toda a mística que o envolve. Já havia ido muitas vezes àquele lugar, onde se misturam - o que existe de mais sagrado e de mais degradante - na comunidade humana; mas aquele dia me marcou, de maneira especial. Um pouco por questionamentos constantes, devido ao perigo de contaminação e, um pouco, por meu medo mesmo; nunca havia partilhado semelhante proximidade, de sentar e comer com eles, por exemplo. Ao andar por ali, brinquei com tia Balbina: como é tia, o que vamos comer hoje? Ela apenas me sorriu e disse: thitela, expressão que quer dizer pode chegar, vai dar. E continuei visitando as outras pessoas.

Logo mais, disseram que ela estava a me chamar. Deparei-me com ela na varanda, a pedir que eu sentasse ao seu lado. Obedeci. Entregou-me uma caneca esfumaçada com quissangua  e alguns grãos de milho torrados e, sem cerimônia, começou a comer. Eram quinze horas. Seria o mata-bicho, o almoço ou a ceia? Decidi que, para mim seria a ceia. E foi.

Foi a celebração da quinta-feira santa mais real que tive. Corpo e sangue de Cristo encarnado, atualizado. Não sei o que diz a teologia a esse respeito, mas sei o que diz, ainda hoje, esse gesto redentor para minha vida. Além de muitos outros aspectos, tal gesto me aproximou definitivamente daquelas pessoas. Aí compreendi o que sentiu Francisco de Assis quando abraçou o leproso. Compreendi que flores podem nascer à margem quando conseguimos superar os preconceitos e o ritualismo.

Informações adicionais

  • Fonte da Notícia: Irmã Carmelita Zanella - Livro Cores da Vida

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