“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me consagrou com a unção, para anunciar a boa notícia aos pobres [...] proclamar um ano de graça do Senhor.” (Lc 4, 18-20).
Eu sou irmã Maria Arli Sousa Nojosa. Nasci aos 18 de dezembro de 1964, em uma comunidade afrodescendente, chamada Lagoa da Mentira, no município de Vitorino Freire - MA. Sou filha de Maria Maciel Sousa e de Paulo Alves Nojosa. Nasci e cresci na pobreza, mas nunca passamos fome porque todo nosso sustento era tirado da terra. Tínhamos fartura de alimentos produzido ali mesmo. Nossos médicos eram nossos avós, que nos curavam com remédios caseiros, nascidos no nosso próprio chão. Não tínhamos energia elétrica, eletrodomésticos e nem estradas. Meus avós maternos José Ricardo Andrade e Maria Laura Sousa Andrade eram os proprietários da terra onde todas as famílias trabalhavam gratuitamente. Havia água de poço em todas as casas, açudes, lagoas, peixes a vontade, animais silvestres, gado muito coco babaçu e matas (capoeira). O rio Gentil atravessava a comunidade, onde eram feitas pequenas represas. Mas a grande riqueza eram as pessoas do lugar, pois nesta comunidade o povo tinha uma fé crescente com uma espiritualidade franciscana que gerava valores como: compaixão, solidariedade e ajuda mútua que transbordava em orações, canções, amor à vida, respeito ao próximo, às coisas alheias, acolhida aos viajantes, aos famintos, alegria, disciplina, educação, danças e sororidade entre as mulheres. Todas elas eram altivas não tinham medo dos maridos!
Éramos todos mergulhados na Comunidade Eclesial de Base, uma Igrejinha ecológica feita de palha, barro e chão batido como nossas casas. Juntos rezávamos o terço, outras orações tradicionais, como a novena ao Divino Espírito Santo, em latim, e a nossa Senhora da Conceição. Tínhamos a celebração (culto) aos domingos e, uma vez por ano, os freis celebravam a Eucaristia conosco. Recordo frei Celso, Frei Daniel, com o passar do tempo, Frei Lucas, frei Antônio, frei Agostinho e Padre Sebastião. Era uma festa! Todo mundo com roupas e calçados novos, fruto do trabalho de nossas mães quebradeiras de coco babaçu.
Iniciei o processo de amadurecimento muito cedo. Queimei etapas do meu desenvolvimento infantil por necessidade familiar, pois meus pais tinham que trabalhar e confiavam nas minhas habilidades, ainda em aprendizado, nas tarefas domésticas e no desenvolvimento da minha responsabilidade no cuidado com meus irmãozinhos. Meus pais saíam cedo. Meu pai saía para a roça e minha mãe com suas primas saíam para quebrar coco babaçu, para ajudar no orçamento familiar. Nós ficávamos sob os olhares de minha avó e da tia Raimunda Dutra de Andrade, que moravam ao lado da nossa casa.
Ainda quando criança, morei uns anos nas cidades de Arame/MA, onde conheci os frades: André e Alberto, e de Imperatriz/MA, onde conheci Frei Anjo e irmã Socorro, que acompanhavam na catequese, na escola e com as famílias. Irmã Socorro foi minha professora no colégio Urbano Rocha e catequista, que também cuidava de nós durante a missa dominical. Portanto, comecei a perceber o jeito da Irmã Socorro de cuidar com muito amor das crianças e jovens. Com a atuação ativa dela, comecei a querer ser igual a ela, pois admirava muito o seu jeito de ser. Um dia, ainda pequena, disse para a irmã Socorro que me sentia chamada por Deus a seguir Jesus Cristo, eu queria ser uma irmã como ela, mulheres que doavam a vida como irmã e professora, elas eram diferentes das outras professoras. A partir deste momento elas aumentaram as visitas à minha família, pois pensavam em me levar para Itália na adolescência, mas um ano depois voltamos para nossa terra natal.
Ao regressar à minha comunidade de origem, despertou em mim o costume de ler a bíblia de minha tia Izabel. Pois, aos domingos, cantava e fazia a leitura do evangelho na celebração (culto da comunidade) e na catequese. Com isto, comecei a conhecer mais a vida, vocação e missão de Jesus Cristo e de São Francisco, com quem na adolescência e juventude me apaixonei ainda mais. Todas as suas ações me deixavam maravilhada, principalmente o amor que Jesus tinha por seu pai, pelos discípulos, crianças, estrangeiros, mulheres e pelos pobres junto com uma espitualidade encarnada na realidade. Isto mexia dentro de mim e me impulsionava a me engajar mais ainda. Tinha prazer em participar, colaborando com as atividades nos cultos, hoje, celebração da palavra.
Também conheci a vida exemplar de sua mãe através do cântico de Maria (o Magnificat). Os meus olhos se abriram em relação ao amor de Deus aos pobres. Essa foi a minha maior descoberta na bíblia, que iluminou o caminho da minha vocação, pois facilitou a minha compreensão de igreja CEBs, a ligação da fé com a vida e me fez sentir que o pobre tinha valor!
Como a vida é dinâmica, nas atividades das comunidades conheci as irmãs Lindalva Alves Cruz, Rosimar e Celite, assessorando encontros de comunidades, juventude e crisma. Me chamou atenção como elas faziam sua missão a partir de Jesus e dos pobres. Novamente, como adolescente, eu sentia o chamado de Deus mais forte dentro de mim. Eu dizia: sim eu quero ser irmã igual a elas. Depois, fui escolhida para participar do curso de dirigentes no Seminário Catequético em Bacabal, onde as Irmãs Catequistas Franciscanas assumiam a missão na pessoa de várias irmãs. Recordo das irmãs Maria Vanah, Adilma Mezzari e Maria de Jesus Rodrigues Lima. Também conheci os freis Adolfo, Godofredo, Eriberto, Klaus e outros. Observei atentamente o seu modo de ser e agir, gostei da maneira como elas viviam alguns valores em irmandade e serviam aos irmãos com preocupação e alegria.
Era um tempo forte de conflito de terra, onde alguns animadores de comunidade eram perseguidos e outros mortos. Elas eram presentes na luta do povo, unindo fé e vida, como eu me sentia chamada. E cada dia sentia que estava no caminho certo e confirmava: eu quero ser irmã igual as Irmãs Catequista Franciscanas.
Percebi que a partir da vivência cristã e francisclariana, Deus continuava me chamando para seguir Jesus Cristo de forma mais radical, como religiosa, através do projeto comum, na vivência em irmandade e com o povo (um forte desejo de igualdade, simplicidade, respeito ao diferente). Porém, sentia que a vocação era um mistério divino, onde o único protagonista é Deus e pensava: Ele não aceita uma resposta abstrata, mas queria uma resposta minha a partir da realidade concreta da vida, e da minha existência, da experiência de vida com Ele na comunidade em um projeto comum para atender o seu chamado. Desejava uma comunidade que não fosse criada só para viver eternamente no “ninho”, porque no ninho a pessoa se sente abastecida, sem desejo de sair, como se ali fosse o tudo, pois assim eu já vivia na minha família, mas queria uma comunidade que eu pudesse me doar dentro de um projeto de muitas mulheres. Que enfrentássemos os desafios, para não me tornar estéril.
Falei para minha mãe, tia, avó, amigas e todas me apoiaram. No entanto, meu pai e meus tios não aceitaram minha decisão e ficaram uns meses sem receberem a minha benção. Mas fiquei firme e resisti, pois sabia o que Deus queria de mim, e estava decidida. Depois, falei com frei Daniel, que me deu todo apoio, e trazia para mim folder de várias congregações: Nossa Senhora dos Anjos, Irmãs Catequistas Franciscanas, Oblatas, Beneditinas, das irmãs Apóstolas de Cristo e outras. Me comuniquei com estas congregações por alguns anos. Algumas vezes fui acompanhada pela irmã Elia, da congregação Nossa Senhora dos Anjos em Bacabal. Mas o jeito de viver das irmãs Catequistas Franciscanas (carisma) me contagiou. Senti que Cristo vivo estava presente nesta congregação. Como de costume, fui participar do encontro dos jovens com meus pais, e aproveitei para falar que queria ser irmã catequista franciscana para irmã Aroni, na frente dos meus pais. Ela acolheu minha motivação, me orientou e disse que iria me acompanhar por cartas. Ao longo de dois anos, fui dando os passos e seguindo a orientação dela. Falei também para irmã Adilma e fiquei 3 dias convivendo com elas na fraternidade em Bacabal (Seminário). Com o tempo, fui crescendo na religiosidade popular e na espiritualidade francislaricana e também participava de grupos de teatro, sindicato dos trabalhadores rurais, fui animadora de comunidade, grupo de cantos, catequista, coordenadora de catequese, de grupo negro, liturgia, professora. Enfim, participei de vários grupos. Mas continuava com o desejo de ser irmã Catequista Franciscana.
O tempo foi passando e fui morar na cidade de Vitorino Freire para estudar no colégio Frei Celso (Colégio das Irmãs). Ao passar na casa das irmãs Catequistas Franciscanas para conversar com elas, irmã Narides Marocco me atendeu com acolhimento muito terno. Então eu disse a ela que era vocacionada e queria ser irmã Catequista Franciscana. Ela sorriu e me disse que iria conversar com as irmãs para me acompanharem. Depois de um ano de acompanhamento na cidade, fui morar na Irmandade de Vitorino Freire, como vocacionada, para facilitar o conhecimento mútuo e continuar o segundo grau. No ano de 1988, ingressei no aspirantado, em Bacabal, com mais três jovens.
No período de formação inicial, fui acompanhada nas irmandades formadoras pelas irmãs Socorro Leite, Lucia Stédile e Maria Aroni. Elas eram bem humanas, sabiam acolher e respeitar as diferenças e nos orientavam com os mesmos sentimentos de Cristo.
Nesta caminhada da vida religiosa, Deus misericordioso foi me capacitando para lidar com o crescimento, as dificuldades, as vitórias, momentos alegres sem euforias, tristezas sem desespero, atitude de oração para escutar as irmãs, a Deus e ao povo. No silêncio para refletir, adquiri calma, paciência, força física, espiritual, mental e interior. Valorizei o aprendizado recebido de várias fontes: da irmandade, do exemplo de vida das irmãs, do carisma da congregação, dos aspectos francisclarianos, da bíblia, da experiência de missão, do trabalho,do projeto social, das comunidades, da igreja, do movimento negro, dos movimentos sociais, dos estudos, dos encontros e cursos. Aprendi que Deus me chamou e continua acompanhando e me capacitando na vida religiosa junto às irmãs da Congregação Irmãs Catequistas Franciscanas, na Província Cléglia Ânesi, para construirmos o reino de Deus que também é nosso.
Teresina/PI, 01 de junho de 2020
Irmã Maria Arli Sousa Nojosa
Comentários
mas quem tem Deus não perde a fé, aumenta as forças e vive com esperança.(Yla Fernandes)
obrigado ir. Arli, pelo seu testemunho de vida, sou grato por sua presença animadora em nossa paróquia Senhora Sant'Ana Independência -Ce. sua dedicação no acompanhamento a catequese, as comunidades , colaborando com a Escola família agrícola.. abraço fraterno Roginaldo.