Na Casa Mãe, em Rodeio, nos dias 27 a 30 de julho, realizou-se o Retiro Provincial com o tema: Discipulado Missionário na Perspectiva de Gênero, numa Igreja em Saída. Estiveram presentes 37 irmãs e 07 simpatizantes do Carisma. O retiro foi orientado por Irmã Ivone Gebara, a qual se colocou mais como uma provocadora do que orientadora. Como alguém que mexe na água parada para fazer circular a vida que já está aí. A sua forma de nos provocar partiu de suas percepções sobre as relações humanas, de suas experiências e de suas escolhas. As reflexões foram, de fato, provocadoras que optamos por compartilhar com as irmãs uma síntese dos conteúdos que foram conduzindo os momentos de oração e reflexão individual e as partilhas coletivas. Desejamos que essa partilha nos ajude a retomar e a aprofundar o momento que estamos vivendo como congregação.
No primeiro dia, Ivone Gebara nos provocou a desconstruir o conceito de discipulado. Temos a tendência de nos conformar dentro dos conceitos criados pelo magistério da Igreja, reproduzindo-os de forma confortável, sem nos perguntar de quem somos discipulas. Ivone nos alertou que se faz necessário tomar consciência de que o discipulado de Jesus não ocorre por meio de uma relação direta e próxima, nem por meio da interpretação de seus escritos, mas já num terceiro grau, ou seja, a partir do que outros escreveram sobre as ações de Jesus, cujos escritores, em geral, foram homens. Muitas “capas” de Jesus foram sendo criadas. Em uma mesma Igreja há muitas interpretações e nem todos falam do mesmo Jesus. De que Jesus somos discipulas? As vezes somos mais seguidoras de nossas inclinações interiores e das experiências que fazemos, que tanto pode construir o bem, como o mal. A nossa inclinação interior para o discipulado precisa espelhar-se em Mateus 25, onde a dor do outro nos comove e nos faz agir. Essa inquietação visceral e humana é expressão do discipulado missionário.
Para sermos fieis à inclinação interior de discipulas missionárias, faz-se necessário desconstruir a imagem da divindade que, historicamente, foi reduzida ao masculino. Essa desconstrução é possível por meio de ausências nos espaços onde nos exploram, da crítica ao patriarcado, da reflexão e de práticas criativas.
No segundo dia fomos provocadas a refletir o discipulado a partir da maestria das mulheres. Isso nos faz sair da doutrina masculina, em que Maria é colocada como discipula, submissa não apenas ao filho, mas ao magistério masculino. É preciso resgatar o poder da força da maestria das mulheres na imagem de Maria também como Mestra de Jesus.
Vivemos em tempos de noites escuras na sociedade, na Igreja e nas congregações, que resultam de diferentes quedas: das utopias fixas religiosas e políticas; da imaginação positivista, das democracias patriarcais e da teologia da libertação. Essas quedas são também fecundas, pois nos levam a reinventarmo-nos como seres humanos. Diante dos escombros de tantas quedas fomos interpeladas a refletir sobre as pedras preciosas que precisam ser resgatadas como luzes que apontam caminhos.
No terceiro dia fomos convidadas a refletir sobre a reinvenção do modelo de cristãos, a partir da perspectiva bíblica. Segundo Ivone Gebara, a Bíblia é patrimônio da humanidade, por isso não pode ser reduzida a uma única forma de interpretação. É necessário despatriarcalizar e desclericalizar a Bíblia, uma vez que o masculino não é o único princípio organizador do mundo e da sociedade. O patriciado limita a imagem Divina da Criação. O movimento de despatriarcalização inclui um movimento de desclericalização, isto é, dizer que a autoridade sobre a Bíblia não é exclusividade do clero. Historicamente ela foi interpretada por homens clérigos que podiam desautorizar outras compreensões. Essa realidade não se sustenta mais. Embora os textos bíblicos tenham sido escritos por homens, precisamos considerar a Bíblia como um texto de atores plurais - homens e mulheres diferentes, o que implica, também, interpretações plurais.
O texto inspira práticas, provoca ações e reflexões novas, toca o coração e impulsiona um comportamento ético que promove a vida. Esses são os princípios que permanecem quando despatriarcalizamos e desclericalizamos a Bíblia. Lembrar que a interpretação do texto deve nos levar para a realidade e essa realidade é quem vai mostrar o absoluto, e o absoluto se expressa na vida a ser cuidada.
Jesus é um discípulo da vida, olha para a realidade e sente com-paixão. O discipulado a Jesus não vem de uma ideia, mas do cuidar da vida, por isso seguir Jesus não é ser um discipulo doutrinário, mas um discipulo da vida. As características do discipulo do Movimento-Jesus são: cuidar da vida; orar (silenciar-se consigo mesmo); ter consciência que se pode ser rejeitado e ser sinal de contradição, em relação a ordem e a moral estabelecida.
No quarto dia, o convite foi continuar aprofundando as características do discipulado da vida. Entre os discípulos de Jesus também houve conflitos que resultaram de compreensões diferentes do jeito de cuidar da vida. E isso pode ser superado quando saímos de nossas paixões egoístas. Quando olhamos para o Evangelho percebemos que os encontros de Jesus são pautados em relações curtas, com ajudas imediatas de uma pessoa aqui outra acolá.
Contudo, as sociedades se complexificam, os problemas aumentam e as relações curtas não dão conta. É nesse contexto que surgem as instituições que se voltam para cuidar da vida ou de problemas mais coletivos. Ex: hospitais, escolas... As instituições se configuram como um grupo de pessoas que se unem para resolver uma necessidade e, para tal objetivo, constroem os meios, as regras e as normas, ou seja, uma doutrina da instituição. Essa doutrina é pautada em uma compreensão de mundo e de sociedade.
As instituições são necessárias, no entanto, quando sua doutrina se torna ultrapassada e não reponde mais as mudanças do mundo e da sociedade, ela precisa ser atualizada, caso contrário a instituição morre. Vale lembrar que o morrer é parte do dinamismo da história e da vida.
A Igreja é uma grande instituição, com uma gerência centralizada que busca impor as mesmas regras para todas as igrejas locais, em contextos diversos. A doutrina da Igreja hoje expressa uma compreensão de mundo desatualizada. A doutrina sobre as mulheres, a família e a sexualidade não corresponde aos tempos atuais, o que faz muitas de nós, mesmo sendo Igreja, sentir-nos desajustadas com tais doutrinas. Entretanto, nessa Instituição nós mulheres não temos poder de decisão porque ainda não vivemos o discipulado de iguais.
Isso nos leva a pensar na Instituição que é nossa Congregação: Porque nasceu? Qual era a vida a ser cuidada? Quais eram as doutrinas, as regras e a compreensão de mundo? O que justifica a sua continuidade? Mudamos a doutrina? O que abraçamos hoje como cuidado da vida?
Ir. Ivone ressaltou que a história evolui, o Estado e as economias mudam e muitas congregações já não existem. As coisas nascem e morrem. Todas as iniciativas de cuidados foram das congregações religiosas, e muitas delas já não respondem mais. A VRC é interpelada a mudar suas doutrinas, discernindo espaços de cuidado da vida, que dialogam com a realidade do mundo contemporâneo. Queremos responder aos tempos atuais, mas nem sempre temos algo que nos agrega como grupo. Vamos cuidando de muita vida em muitos campos distintos. Diante de tanta diversidade as pessoas que querem entrar em nossos grupos precisam ser criativas para encontrar um jeito de cuidar da vida. Segundo Ivone Gebara, diante das incertezas é preciso viver a vida no cotidiano sem nos desesperar. Viver de tal forma que a vida tenha sentido para nós e para os que nos rodeiam.
Em relação ao ser discipulas em uma Igreja em Saída, precisamos nos dar conta de que a VRC feminina já está em saída há muito tempo. O documento do Papa deve, sim, interpelar a hierarquia da Igreja que vem se fechando às necessidades do povo e dos pobres. Para nós, uma Igreja em saída é a capacidade de acolher e assumir as mudanças da história; acreditar que cada dia é um novo céu e uma nova terra, ou seja, viver intensamente o momento presente com seus desafios, sem apegos ao passado e sem angustia diante do futuro.
Para qualquer saída ampla, do ponto de vista religioso e político, não se tem clareza. Em tempos de escuridão precisamos dar as mãos, uma vez que ninguém tem certeza de nada. Estamos vivendo o não saber juntas. A única lei que temos e que funciona hoje é dar as mãos, dando passos naquilo que parece ser o melhor CAMINHO.
A partir das reflexões provocativas, em cada período do dia fomos motivadas a momentos de silêncio e de reflexão individual, seguida por partilhas que ora inquietavam o coração, ora apontavam luzes. As celebrações diárias foram nos colocando dentro da dinâmica do retiro. Por tudo o que vivemos e experienciamos, dizemos: Bendita é a Mãe Divina que nos trouxe até aqui. Benditas foram as provocações fecundas de Irmã Ivone Gebara.
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