Num de seus últimos sermões, São Romero de América, bispo, pastor e mártir da luta pela justiça, pelo direito à vida e liberdade do povo salvadorenho proclamou/profetizou: “Si me matan, resuscitaré, en la lucha del Pueblo salvadorenho”. Sua morte, como a morte de Zilda Arns, Angeleli, Zumbi dos Palmares, Santos Dias, Mãe Bernadete e Binho do Quilombo, Cléglia, Berta Cáceres, P. Josimo, Ângelo Kretã, José Machado, Chico Mendes, entre outros tantos que tombaram para ajudar o povo a manter-se de pé, foi sua entrada definitiva no coração e na vida do mesmo povo, no coração da história da luta pela conquista e resgate da dignidade, da vida vilmente roubada de povos, grupos, classes e nações oprimidas.
Em nossa cultura cristã-católica ocidental iniciamos o mês de novembro fazendo memória agradecida de todos que, antes de nós já tomaram posse do Reino preparado desde a fundação do mundo (cf Mt 25,34), oficialmente reconhecida e celebrada, ou não, a santidade de sua vida. Pela visão cristã da morte somos convidadas/os a contemplá-la como porta para a vida, uma vida mergulhada na Fonte da Vida, visão que consola e fortalece, no momento difícil da partida de alguém próximo, querido.
Para Francisco ela é irmã a quem soma na lista de irmãos e irmãs, motivos para louvar a Deus: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã a morte corporal da qual nenhum vivente pode escapar”. Por essa fraternal acolhida, conforme testemunho biográfico, sua morte se revestiu de glória: “Acorreram as multidões louvando a Deus e dizendo: “Louvado e bendito sejas, Senhor nosso Deus, que a nós indignos confiaste tão santos despojos! Louvor e glória a ti, Trindade inefável!”
A cidade de Assis veio em peso, e a região inteira acorreu para contemplar os prodígios divinos que o Senhor da majestade realizara gloriosamente no seu santo servo. Cada um entoava seu canto de alegria, conforme lhe inspirava a alegria do coração, e todos bendiziam a onipotência do Salvador que tinha cumprido seus desejos. Mas os filhos choravam por ter perdido semelhante pai e mostravam com lágrimas e suspiros a piedosa afeição de seus corações.
Mas um gozo inaudito temperava a tristeza e a singularidade do milagre enchera-os de assombro. Mudou-se o luto em cântico e o pranto em júbilo. Nunca tinham ouvido falar nem tinham lido sobre o que seus olhos estavam agora vendo. Se o testemunho não fosse tão evidente, mal poderiam acreditar. Brilhava nele uma representação da cruz e da paixão do Cordeiro imaculado, que lavou os crimes do mundo, parecendo que tinha sido tirado havia pouco da cruz, com as mãos e os pés atravessados pelos cravos e o lado como que ferido por uma lança.
Contemplavam sua pele, escura em vida, brilhando de alvura, e confirmando por sua beleza o prêmio da bem-aventurada ressurreição. Viam seu rosto como o de um anjo, como se estivesse vivo e não morto, e seus membros tinham adquirido a flexibilidade e a contextura de uma criança. Seus nervos não se contraíram, como acontece com os mortos. A pele não se endureceu e os membros não se enrijeceram, mas dobravam para onde se quisesse”.
Clara, por seu lado, ansiava pela morte como libertadora, como possiblidade de encontro pessoal com Jesus Cristo, por quem vivera e a quem antevia, sentindo a segurança de que seria recebida por Ele com profundo amor, ela que somente a Ele amou e se entregou com profunda paixão.
O mundo conheceu este desejo proclamado por ocasião de sua canonização: “Aproximava-se o momento de a divina Providência cumprir os seus desígnios sobre Clara. Chegava o momento de Cristo receber a pobre peregrina no palácio do Reino Celestial. Da sua parte ela ansiava do mais fundo de si mesma a libertação do corpo mortal. O seu maior desejo era contemplar a Cristo pobre, agora reinante na morada celeste, que ela de todo o coração havia seguido em pobreza. Às velhas doenças que lhe enfraqueciam os benditos membros, juntava-se agora uma extrema debilidade. Era o sinal da proximidade da chamada do Senhor, que lhe preparava o caminho da eterna salvação (LSC 41,1-3).
“Voltando-se sobre si mesma, a santa virgem assim falava silenciosamente à sua alma: “Vai em segurança, que boa escolta levas para a viagem. Vai, dizia ela, porque Aquele que te criou, também te santificou. Ele sempre te protegeu como uma mãe ao seu filho e amou-te com ternura. Bendito sejas, Senhor, porque me criaste”. Quando uma irmã lhe perguntou com quem falava respondeu: “Falo com a minha bendita alma”. Estava próximo o glorioso guia. Com efeito, voltando-se para uma das irmãs, perguntou-lhe: “Filha, vês o Rei da Glória como eu vejo?” (LSC 46,1-0).
Que Francisco, Clara, todos os santos, as santas todas, as Irmãs que chegaram antes de nós na glória, nossas mães e pais, familiares, amigas e amigos nos ajudem a viver de tal maneira, que possamos sentir a morte como amiga, como libertadora, porteira do Reino da Vida.
Que nos anime e fortaleça a confiança: passando por esta porta, contemplaremos com nossos próprios olhos o rosto inefável de nosso Deus.
E que em nossa vida aprofundemos a convicção que animou Santa Teresinha do Menino Jesus: “Não morro, entro na vida”.