“Não são os destemidos que se destacam, mas aqueles que, mesmo sentindo o gelo do medo em suas veias, escolhem avançar”.
Povo Guarani Kaiowá
Memória: olhar histórico
O processo de colonização dessa região é secular, marcado por um histórico de invasão e exploração do território tradicionalmente pertencente aos povos Guarani e Kaiowá. Desde o início, essas terras têm sido alvo de ameaças e violações, impulsionadas por diferentes ciclos econômicos e colonizadores. A Companhia Mate Laranjeira (1887 a 1916), a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), instituída durante o governo de Getúlio Vargas em 1950, que consistia em doar títulos agrários aos migrantes de vários estados do Brasil, e, finalmente, o ciclo atual da economia depredatória da monocultura, o agronegócio. Todos esses processos compartilham a mercantilização da terra como eixo central.
Para consolidar esse projeto colonizador, o Estado confinou a população indígena Guarani Kaiowá em oito reservas, estabelecidas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Essa foi uma estratégia estatal para manter o controle sobre essas etnias e legitimar um suposto projeto de desenvolvimento para o Mato Grosso do Sul.
Desde 2011, um estudo da FUNAI identificou e reconheceu mais de 12 mil hectares na região conhecida como Terra Indígena (TI) Panambi Lagoa Rica, localizada nos municípios de Douradina e Itaporã, próximos à cidade de Dourados, a segunda mais populosa do estado. Apesar de ser oficialmente declarada Terra Indígena, o processo de demarcação não avançou, resultando em uma vida insustentável nas oito reservas. Com o aumento da população em áreas reduzidas, as comunidades enfrentam fome, falta de água, violência e conflitos internos, decorrentes dessa situação de confinamento, que muitos descrevem como "chiqueiro".
Movidos pelo chamado e pulsar da Mãe Terra em suas veias, os Guarani Kaiowa se mobilizam e colocam seus pés a caminho em busca de seu território sagrado e ancestral, onde seus antepassados plantavam, caçavam e viviam em harmonia com a natureza. Esse movimento, conhecido como Retomada, é um retorno às origens, ao Tekoha, o lugar onde é possível viver como Guarani Kaiowa. A cada Retomada, as tradições e culturas são revitalizadas, garantindo o "Bem Viver" das novas gerações. A espiritualidade permeia suas vidas por meio de rituais, danças e cantos sagrados. Enquanto a demarcação de seus territórios ancestrais não for concluída, as retomadas continuarão.
Desde meados de julho os Guarani Kaiowa da TI Panambi-Lagoa Rica vivem sob cerco e ataques constantes de um acampamento armado de fazendeiros, com o apoio das autoridades judiciais e policiais do Estado do Mato Grosso do Sul. Os latifundiários avançam sobre os povos originários, espalhando o terror e deixando feridos graves; as balas letais estão alojadas nos corpos dos indígenas. Os massacres ocorrem à noite e nos finais de semana, quando os fazendeiros chegam em suas caminhonetes, com armas e faróis acesos, intimidando Nhandesys, Nhanderus, jovens e crianças que entoam seus cantos sagrados ao ritmo das danças de resistência do guachire.
O Sonho Missionário Indica o Caminho a Seguir...
A Missão Guarani Kaiowá em Dourados-MS foi assumida como prioridade pela Congregação em seu centenário (2015). Respondemos ao chamado da Mãe Terra e permitimos que o sopro da Divina Ruah nos conduzisse para além das margens conhecidas, rumo ao desconhecido, ao inusitado e surpreendente. Nossa opção é fazer a travessia junto ao povo, experimentando a aridez do deserto, enfrentando o medo e o pânico, mas sempre impulsionados por algo maior: a certeza de que Ele está na barca e nunca nos deixa à deriva (Mt 14,33).
As travessias são marcadas por silêncios, diálogos, escuta, sombras e luzes, por uma força vital que nos aponta para algo superior. Isso nos faz PERMANECER ancorados na fidelidade ao discipulado de Jesus. O povo Guarani Kaiowá nos ensina que "não é a ausência do temor que os move, mas a força de vontade para continuar lutando pelo que acreditam, mesmo quando tudo parece perdido". Em tempos de travessia e reorganização, é essa determinação que nos faz avançar.
Ser irmã do povo e parte do Corpo da Missão junto ao povo Guarani Kaiowá significa unir-se às caravanas de solidariedade, compostas por movimentos sociais, pastorais, Igreja Católica, CRB, CEBI e instituições como MPF, MPI, FUNAI, DPU e DPE. Durante as visitas, a voz profética das Nhandesys (mães do povo) legitima essas áreas como território sagrado, ao recordar a infância, a luta e a resistência de seus antepassados.
Acompanhamos os processos político-jurídicos das mesas de conciliação entre latifundiários e o povo Guarani Kaiowá, fundamentados nos direitos constitucionais dos artigos 231 e 232, que garantem o direito originário ao território. Não há possibilidade de acordo, pois direitos conquistados e garantidos pela Constituição Federal não são negociáveis. A solução para os conflitos é a demarcação do território indígena.
Seguimos confiantes e desafiadas a despojar-nos do medo, romper limites e confiar no Sopro que nos conduz sempre ao novo. Forjamos novos caminhos, despertamos dons adormecidos e nos encorajamos a seguir para outras margens. Dessa forma, as palavras inspiradoras de Santa Clara nos sustentam na missão, pois assim seremos: "Auxiliares do próprio Deus, sustentáculo dos membros vacilantes de seu Corpo inefável".
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