Damiana agradeceu o modesto socorro que lhe oferecemos e se afastou com a família. É uma mulher miúda, como seus parentes guaranis-kaiowás. No momento, lidera o que restou de sua aldeia: a filha dela, dois adolescentes de idade indefinida e três crianças, além do cachorrinho que só percebi porque ganiu quando alguém pisou nele, no escuro.
O menino de oito anos segurava uma lança um pouco mais alta que ele; o adolescente maior, uma borduna. Será este talvez todo o arsenal de guerra que ainda possuem. Devem saber que as armas não teriam serventia para enfrentar um pistoleiro. Muito menos um bando. Vulneráveis desse jeito -e ainda resistentes. Até o fim. Que convicção sustenta a valentia deles?
Ficamos ainda do lado de fora vendo o grupo sumir na escuridão. Percebi que tinham arrastado uma árvore seca, que até eu sou capaz de remover, para simular um bloqueio à porteira de entrada.
Nosso reforço consistiu em levar lanternas e alguns celulares carregados para que pudessem chamar por socorro -vindo da parte de quem? De nós quatro? Da polícia? -caso os capangas do fazendeiro decidissem cumprir as ameaças que fizeram por três vezes, durante o domingo [10/11].
Do outro lado da estrada, os faróis dos caminhões iluminavam de passagem os fantasmas dos casebres em que eles viviam antes de entrar na fazenda. Se não era para entrarem de volta na terra que o fazendeiro tomara, por que tocaram fogo nas casas dos índios no acostamento?
Essa pergunta é a mais fácil de responder: maldade. Para mostrar quem manda. Além de manchar a perfeição monótona da soja, a simples presença de um acampamento indígena na beira da estrada arranha o sentimento de soberania do fazendeiro.
Não se trata de estética: o esqueleto dos casebres calcinados é muito mais feio do que a presença de gente inofensiva, mas persistente. Vai ver, o que incomoda é justo essa persistência a desafiar a lei do mais forte. A única lei que todos reconhecem na região. Menos os índios.
A razão dos guarani para permanecer na terra é um pouco mais sofisticada. Eles não admitem abandonar seus mortos. Que por sua vez foram assassinados porque se recusavam a abandonar a terra de seus mortos mais antigos e assim por diante. O fio que dá sentido à vida deles não se rompe com a morte dos antepassados.
Ao contrário: os vivos continuam a se relacionar com os que se foram. Continuam ligados não apenas à memória dos mortos, como nós, mas ao terreno onde morreram e foram enterrados, pois ali eles ainda estão. Não se abandona a terra que abriga os corpos dos antepassados, dos companheiros e filhos, dos que morreram de velhice, de doença ou de tiro, ao proteger o mesmo cemitério indígena onde repousam antepassados ainda mais remotos.
Por isso mesmo a maior maldade que os pistoleiros poderiam ter feito foi sumir com o corpo do cacique Nísio Gomes, no acampamento Guaviry (MS) em 2011, depois de atirarem nele de frente, à queima-roupa. Eles chegaram e chamaram o cacique, que se apresentou de pronto, sabendo que, se fugisse, a família inteira seria atacada.
O corpo foi jogado na caçamba da caminhonete e nunca se soube para onde foi levado. Mais um motivo para o povo do Guaviry não se mover do lugar onde o sangue ficou misturado com a terra.
Não entendi ainda a coragem resignada dos guaranis-kayowás de Mato Grosso do Sul. Será que eles não sabem que suas chances são mínimas?
O que eles reivindicam não é a propriedade, é o pertencimento. Não é a terra "deles", embora saibam que a lei do branco exige papel passado. Não é a propriedade, é a terra à qual eles pertencem.
Essa língua é mais estrangeira ao capitalista do que a própria língua indígena. A terra não é posse, não se troca por dinheiro, não serve para especular. Serve para você saber quem você é. Vincent Carelli, o criador do projeto Vídeo nas Aldeias, chama de martírio a disposição de resistência pacífica dos guaranis-kayowás. Pelo jeito, pretendem levar a briga até o fim.
A família de Damiana se afasta em direção aos barracos. Um de nós diz "boa-noite", sem pensar. Isso é coisa que se diga a quem não sabe se vai ter dia seguinte?
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